sábado, 26 de abril de 2008

A outra ;


Amamos sempre no que temos O que não temos quando amamos. O barco pára, largo os remos E, um a outro,as mãos nos damos. A quem dou as mãos? À Outra. Teus beijos são de mel de boca, São os que sempre pensei dar, E agora a minha boca toca A boca que eu sonhei beijar. De quem é a boca? Da Outra. O remos já caíram na água, O barco faz o que a água quer. Meus braços vingam minha mágoa No abraço quie enfim podem ter. Quem abraço? A Outra. Bem sei, és bela, és quem desejei.. Não deixe a vida que eu deseje Mais que o que pode ser teu beijo E poder ser eu que te beije. Beijo, e em quem penso? Na Outra. Os remos vão perdidos já, O barco vai e não sei para onde. Que fresco o teu sorriso está, Ah, meu amor, e o que ele esconde! Que é do sorriso Da Outra? Ah, talvez, mortos ambos nós, Num outro rio sem lugar Em outro barco outra vez sós Possamos nós recomeçar Que talvez sejas A Outra. Mas não, nem onde essa paisagem É sob eterna luz eterna Te acharei mais que alguém na viagem Que amei com ansiedade terna Por ser parecida Com a Outra. Ah, por ora, idos remos e rumo, Dá-me as mãos, a boca, o teu ser. E façamos desta hora um resumo Do que não poderemos ter. Nesta hora, a única Sê a Outra.


[Fernando Pessoa]

sexta-feira, 25 de abril de 2008

'Um a Um'


Eu não quero ganhar, eu quero chegar junto Sem perder Eu quero um a um com você No fundo, não vê? Que eu só quero dar prazer Me ensina a fazer canção com você Em dois, corpo a corpo, me perder Ganhar você! Muito além do tempo regulamentar Esse jogo não vai acabar É bom de se jogar Nós dois, um a um Nós dois, um a um Nós dois, um a um Nós dois Eu não quero ganhar, eu quero chegar junto Sem perder Eu quero um a um com você No fundo, não vê? Que eu só quero dar prazer Me ensina a fazer canção com você Em duo, pouco a pouco, me perder Ganhar você! [ Marisa Monte ]

terça-feira, 22 de abril de 2008

sábado, 19 de abril de 2008

Eu sei que a gente se acostuma !




Eu sei que a gente se acostuma.

Mas não devia.

A gente se acostuma a morar em apartamento de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E porque à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.

A gente se acostuma a acordar de manhã, sobressaltado porque está na hora.

A tomar café correndo porque está atrasado. A ler jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíches porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia. A gente se acostuma a abrir a janela e a ler sobre a guerra. E aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E aceitando as negociações de paz, aceitar ler todo dia de guerra, dos números da longa duração. A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto. A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que paga. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagará mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com o que pagar nas filas em que se cobra.

A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes, a abrir as revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema, a engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.

A gente se acostuma à poluição. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às besteiras das músicas, às bactérias da água potável. À contaminação da água do mar. À luta. À lenta morte dos rios. E se acostuma a não ouvir passarinhos, a não colher frutas do pé, a não ter sequer uma planta.

A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente só molha os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer, a gente vai dormir cedo e ainda satisfeito porque tem sono atrasado. A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele.

Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se da faca e da baioneta, para poupar o peito.

A gente se acostuma para poupar a vida.

Que aos poucos se gasta, e que, de tanto acostumar, se perde de si mesma.

terça-feira, 15 de abril de 2008

Momento de inspiração após assistir Amélie Poulain;


Gosto de andar descalço em chão geladinho. Dos meus pés ainda molhados na hora de dormir. Do gosto da goiabada misturado ao amargo do creme de leite. De marcar com grafite os trechos que me tocam nos livros (principalmente nos de Clarice). De vestir meu jeans favorito com aquela camiseta branca. Do chocolate quente na companhia do Marcel, de manhã (sem ele, o chocolate já não fica com o mesmo gosto). De cachorro-quente de rua, com direito a salsicha, carne, frango, milho, ervilha e batata palha. Do barulho de água caindo. Do caldo do feijão marrom preparado aqui em casa. Gosto de ver uma mata bem verdinha, após a chuva. Das cores de fotografias antigas. De circular sozinho pelas festas e shows. De coca-cola e pão com manteiga no meio da tarde em dia de trabalho (tem que ser no trabalho). De passar meu perfume favorito por todo o corpo antes de dormir (o prazer é mais pelas lembranças de criança do que pelo proprio cheiro do perfume). Adoro Serenata de Amor quando está bem crocante e devorar ansioso uma caixa de Bis branco. O calor do corpo do outro, num abraço forte. O sol das sete horas da manhã. Tomar sorvete de ameixa ou castanha na Sorveteria da praça e observar o movimento dos carros e das pessoas, no meio de uma tarde corrida e quente...

E os seus pequenos prazeres, quais são?